01/04/2024

A apropriação de crédito de ICMS nas operações de transferências

Por: Julia Ferreira Cossi
Fonte: Folha de S. Paulo
Em 2021, o STF iniciou o julgamento da ADC 49, na qual restou definido que
é inconstitucional a incidência do ICMS sobre a transferência interestadual de
mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma pessoa jurídica, diante da
ausência de transferência de titularidade, em razão disso, ainda permitiu a
manutenção dos créditos da entrada.
Na ocasião, a Suprema Corte modulou a decisão, de forma a resguardar os
contribuintes que tinham processo judicial ou administrativo em andamento,
para que os seus efeitos passassem a valer apenas a partir de 2024, data em que
os estados deveriam regulamentar a transferência de referidos créditos,
ressalvada a transferência pelo contribuinte, em caso de omissão pelos entes
estaduais.
Assim, desde o final de 2023, os contribuintes têm sido bombardeados com
novas legislações que regulamentam a transferência dos créditos das operações
ocorridas entre estabelecimentos no mesmo titular. Como por exemplo, o
Convênio nº 174/2023 (publicado em 31/10/2023 pelo Confaz) que inovou
no ordenamento, trazendo a obrigatoriedade de transferência dos créditos de
ICMS para o estabelecimento de destino, mediante o destaque do ICMS em
campos próprios da Nota Fiscal de transferência.
Diante de alguns questionamentos jurídicos quanto a sua validade, o estado do
Rio de Janeiro não aderiu ao Convênio nº 174/2023, e em seguida, no dia
17/11/2023, foi publicado o Ato Declaratório nº 44/2023 do Confaz rejeitando
integralmente o referido convênio.
Posteriormente, em 01/12/2023, foi publicado o Convênio nº 178/2023, com
vigência a partir de 01/01/2024, que trouxe exatamente os mesmos
procedimentos de transferência de crédito de ICMS do Convênio anterior,
sendo que a única alteração foi quanto ao momento de entrada em vigor, e que
os estados não teriam mais que ratificar o novo convênio, violando as regras da
Lei Complementar nº 24/75.
Dias após a publicação do novo convênio, foi publicada a nota orientativa de
preenchimento do EFD ICMS IPI, no site do SPED, a fim de esclarecer sobre
a escrituração das Notas Fiscais nas transferências de crédito nas remessas
interestaduais entre estabelecimentos do mesmo titular. Nesta Nota foi
reconhecida a não incidência do ICMS nas operações de transferência, no
entanto, foi confirmada a necessidade de destaque do imposto nas Notas Fiscais
de remessa, embora não sejam tributadas. Também foi informada a necessidade
de escrituração das Notas nos Livros de Entradas e de Saídas no Registro C190
do EFD ICMS IPI.
Além disso, o estado de São Paulo ratificou o Convênio nº 178/2023 no dia
22/12/2023 por meio da publicação do Decreto nº 68.243/2023, com vigência
a partir de 01/01/2024, determinando que a transferência do crédito seria
obrigatória nas remessas interestaduais e opcional nas remessas internas.
Não obstante, o Congresso Nacional propôs e aprovou o PLP nº 116/2023,
sobre a não incidência do ICMS nas transferências e, em 29/12/2023, a
Presidência da República sancionou e publicou a Lei Complementar nº
204/2023, que dispôs que não se considera ocorrido o fato gerador do ICMS
na saída de mercadorias de estabelecimento para outro de mesma titularidade,
mantendo-se o crédito relativo às operações e prestações anteriores em favor
do contribuinte.
Ainda, de acordo com a Lei Complementar, nas operações interestaduais os
créditos são assegurados pela unidade federada de destino, limitados ao
percentual da alíquota interestadual, e pela unidade federada de origem somente
sobre diferença positiva das operações.
No mesmo dia em que a Lei Complementar foi promulgada, foi publicado o
Convênio nº 228/2023, dispondo que os estados e o Distrito Federal poderão
permitir a aplicação das regras sobre emissão de documento fiscal vigentes em
31/12/2023, de 01/01/2024 a 30/04/2024, até ser publicada a regulamentação
interna dos estados.
Este convênio trouxe o debate sobre a possibilidade de aqueles contribuintes
que estavam amparados por decisão judicial para não tributar, não destacar o
ICMS nas operações de transferências, e continuar a adotar esse procedimento
até 30/04/2024, caso o estado onde está localizado não regulamentasse estas
operações.
Todavia, no caso do estado de São Paulo, que já internalizou as regras do
Convênio nº 178/2023, esta argumentação perde força, uma vez que devem ser
observadas as regras já vigentes.
Porém, tais disposições geraram discussões judiciais sobre a sua legitimidade,
uma vez que o STF, na decisão da ADC 49, reconheceu que não deve haver o
destaque do ICMS nas operações de transferências interestaduais, diante da
ausência da ocorrência de fato gerador do imposto. Com o novo procedimento,
na prática, a Nota Fiscal permanecerá sendo emitida como destaque do imposto
e o débito na apuração, o que na maioria dos casos não é benéfico para os
contribuintes que há anos têm de recorrer ao Judiciário.
Além disso, tanto é evidente que os convênios não alteraram a sistemática
anterior de tributação, que inclusive trouxeram a base de cálculo do imposto
para sua ocorrência.
Por fim, questiona-se sobre a legalidade da obrigatoriedade da transferência dos
créditos para o estabelecimento do destino, tendo em vista que a decisão da
Corte não mencionou sobre tal exigência. E discute-se se o Convênio era o
instrumento normativo correto para regular os créditos tributários, pois,
segundo a Constituição Federal, essa regulamentação deveria ser realizada por
Lei Complementar.
Ou seja, as novas regulamentações sobre o assunto intensificaram as discussões
sobre a legalidade do Convênio nº178/2023, e da própria Lei Complementar,
uma vez que no julgamento da ADC 49, não restou determinado que é
obrigatória a transferência dos créditos. Com relação a todos os
questionamentos expostos, havia uma expectativa de que o STF encerrasse de
uma vez por todas a questão, uma vez que o Sindicato Nacional das empresas
distribuidoras de combustíveis e lubrificantes havia protocolado Embargos de
Declaração, como amicus curie, requerendo esclarecimento expresso quanto à
obrigatoriedade ou não da transferência dos créditos das operações. Além disso,
requereu que os efeitos da decisão passassem a valer apenas a partir de 2025.
Em 21/02/2024, foi finalizado o julgamento, que por unanimidade rejeitou os
Embargos de Declaração.
Com isso, restou novamente uma insegurança jurídica enorme sobre o assunto
em questão, tendo em vista que para alguns contribuintes realizar a transferência
do crédito, implica na necessidade de seu estorno em razão de Regimes
Especiais e Convênios que disciplinam sobre benefícios fiscais como, por
exemplo, o Convênio 100/97, o que pode se tornar prejudicial para operação.
Tal fato acaba acarretando em uma movimentação de mercado para
ajuizamento de novas ações judiciais, objetivando o afastamento dos efeitos dos
Convênios e Lei Complementar mencionadas, a fim de que não seja obrigatória
a transferência dos créditos em todas as operações.
A questão vem sido questionada há décadas no Judiciário, e agora com o
julgamento definitivo da ADC 49, as discussões deveriam ter sido encerradas.
Todavia, na prática, o que vem acontecendo é um aumento significativo do
contencioso, diante da tamanha insegurança que os contribuintes estão
vivenciando.
Em conclusão, considerando este cenário, a partir de 01/01/2024 entraram em
vigência as regras dispostas pelo Convênio nº 178/2023 e na Lei Complementar
nº 204/2023, sendo obrigatória a observância das novas regulamentações. Os
contribuintes devem avaliar na prática quais são os impactos das novas regras
em suas operações, já que o tema ainda está longe de estar pacificado e neste
ano haverá mais desdobramentos relevantes.